29 de jun. de 2009

[Faixa Expressa] Chevrolet Brasil: A filial que perdeu a matriz


A concordata da GM americana deixou a operação brasileira órfã e os desafios à frente são complexos - mas, com alguma dose de sorte, a inusitada situação pode deixá-la até mais forte
Robson Fernandjes/AE
Fábrica da GM em São Caetano: projetos adiados e incerteza quanto aos novos rumos
Por Carolina Meyer | 25.06.2009 | 00h01

Revista EXAME -

A esta altura, muitos de vocês já terão ouvido que a GM nos Estados Unidos entrou com pedido para uma reestruturação judicial, conhecido como 'Chapter 11'. (...) As nossas operações no Mercosul são juridicamente independentes da GM, (...) financeiramente saudáveis, contam com uma forte rede de concessionárias e base de fornecedores. (...) Todos esses fatores, aliados ao talento e ao comprometimento de nossos empregados, irão assegurar nossa força e sucesso até que a GM complete sua reestruturação." Foi com essa mensagem que os mais de 20 000 funcionários da General Motors no Brasil iniciaram sua jornada de trabalho no dia 2 de junho, terça-feira. Embora a "corporação", como é conhecida a matriz americana por aqui, agonizasse há quase um ano à espera de um resgate financeiro por parte do governo dos Estados Unidos, ainda havia alguma esperança entre engenheiros, executivos e funcionários brasileiros de que a GM, um dos símbolos do capitalismo industrial americano, não entrasse em concordata. Por meses seguidos, o colombiano Jaime Ardila, presidente da subsidiária, escreveu em seus comunicados que a companhia não precisaria recorrer ao expediente. Com o fim das ilusões, a operação brasileira entra oficialmente em uma situação complicada: a de filial cuja matriz quebrou. "Estamos por nossa conta", afirmou um executivo da GM do Brasil, sob a condição de não ter seu nome revelado. Procurada por EXAME, a montadora não quis dar entrevista.

A rigor, o anúncio da concordata apenas legitimou uma situação que perdurava há quase três anos. Desde 2005, quando a GM americana deu os primeiros sinais de agonia financeira, um profundo sentimento de orfandade grassava na operação brasileira. Nesse período, importantes decisões de investimento foram postergadas, e a burocracia - uma característica tradicional da empresa - chegou ao paroxismo. Todos os projetos de novos veículos iam e voltavam, várias vezes, entre Brasil, Estados Unidos, Europa e Coreia do Sul (sedes das principais divisões de tecnologia da GM). Um deles, batizado provisoriamente de GSV, sofreu uma série de contratempos. Concebido na matriz e desenvolvido na Coreia, o GSV contaria com a participação da subsidiária brasileira na transferência de tecnologia. Até hoje, a plataforma para a construção do veículo não foi concluída e o local para a produção do carro, um potencial concorrente do Tata Nano, segue indefinido. Com a concordata, ninguém no Brasil sabe o que será do carrinho. Nos últimos meses, havia dúvida também em relação a quem determinaria os rumos da companhia. Com a saída forçada do então presidente, Richard Wagoner Jr., a operação brasileira perdeu contato com um executivo que nutria fortes laços com o Brasil. "Não sabíamos ao certo que rumos a nova companhia iria tomar", diz um executivo da GM. A dúvida só foi solucionada no início de junho, quando ficou claro que o governo americano seria o maior acionista da nova companhia e apontou um forasteiro, Edward Whitacre Jr., de 67 anos, ex-presidente da AT&T, para comandar o processo de retomada e assumir o cargo de presidente do conselho de administração, deixado por Wagoner. Para a presidência executiva, antes também ocupada por Wagoner, foi indicado um velho conhecido da subsidiária brasileira. Fritz Henderson, presidente da montadora no Brasil entre 1997 e 2000, assumiu o posto de CEO em março deste ano - e permaneceu nele depois da concordata. Mas é Whitacre que hoje dá as ordens.

A General Motors abriu sua primeira fábrica no Brasil em 1930. Por mais de 70 anos, carros com o logotipo da companhia foram objeto de desejo da classe média brasileira - e durante todo esse tempo foi sempre a matriz que mandou dinheiro para o Brasil. O fluxo se inverteu apenas em 2006 e, desde então, só fez crescer. A operação brasileira tornou-se a segunda maior em volume de carros produzidos e a terceira mais lucrativa do mundo. Nos últimos meses, as remessas de dinheiro do Brasil para Detroit se tornaram diárias - o que, em última análise, pode comprometer o desempenho da subsidiária no médio e no longo prazo. O início da produção da nova picape S10, um projeto acalentado pelos engenheiros brasileiros há quase dez anos, foi adiado para 2011 por contenção de gastos. Pela mesma razão, a GM desistiu de trazer o sedã Insignia, desenvolvido pela Opel, que está na iminência de ter seu controle vendido a um consórcio formado pela fabricante de autopeças austro-canadense Magna e o banco russo Sberbank. (A Opel era a principal fornecedora de tecnologia para a subsidiária brasileira. Com sua eventual venda, a GM brasileira passaria a receber tecnologia principalmente da operação coreana.) Em paralelo, a importação do modelo Malibu, prevista para este ano, foi cancelada, e a chegada da SUV Traverse, vinda dos Estados Unidos, foi postergada para 2010. Nas fábricas, apesar dos gargalos na cadeia de produção e do mercado aquecido, novas contratações foram congeladas. O aperto chegou a tal ponto que, no início do ano, a GM se recusou a receber protótipos de peças de alguns fornecedores como forma de se esquivar do pagamento pelo desenvolvimento de ferramentas. "Queríamos evitar a concordata a todo custo", afirma um executivo da GM no Brasil. O esforço, como se sabe, não foi suficiente.

Diante do novo cenário, é crescente a preocupação entre os executivos da GM no Brasil de que a agonia da matriz acabe respingando por aqui. Para evitar que isso aconteça, a filial decidiu aumentar em 30% os investimentos em publicidade. Ao mesmo tempo, deflagrou uma agressiva política de bônus e descontos para toda a sua linha de veículos, com incentivos que variam de 600 a 3 900 reais, dependendo do modelo. Com isso, conseguiu chegar à liderança do mercado da Grande São Paulo no mês de maio. "Continuamos na disputa por mercado", afirma um executivo da empresa. "A GM não está morta." Para voltar a crescer, a montadora investe em dois grandes projetos. O primeiro - e mais aguardado deles - é o Viva, uma nova plataforma que irá contemplar três novos modelos. O lançamento da versão hatch, que deverá se posicionar entre o Corsa e o Astra, está previsto para o mês de setembro deste ano (a estreia das outras duas versões, uma picape e uma minivan, está marcada para 2010). O segundo projeto, este ainda sem data prevista, é justamente o lançamento do GSV. "Por anos, a matriz revelou-se um peso no processo de tomada de decisões da GM brasileira. Com a concordata, a operação local deve ganhar alguma autonomia e isso será muito benéfico", diz um consultor próximo à montadora.

Ainda que os planos de curto prazo deem certo, o sucesso de um ou dois projetos está longe de garantir à operação local um futuro livre de percalços. A GM conta com uma linha de veículos defasada, em comparação tanto às suas concorrentes no Brasil quanto a seus pares no exterior. Modelos como Corsa, Astra e Vectra, os carros-chefe da companhia, estão até duas gerações atrás de suas versões europeias. E o tão aguardado Viva, que chega ao mercado com pelo menos três anos de atraso, vai utilizar uma das plataformas mais antigas em operação na GM. Tal fato vem se refletindo numa incômoda perda de participação de mercado nos últimos anos. A fatia da GM, que já foi de 24% em 2002, caiu para 19% em maio deste ano, o menor patamar da história da montadora no país. Com a falta de novos modelos, a expectativa é que essa participação possa cair ainda mais nos próximos anos. Isso significa que a GM precisará oferecer descontos cada vez maiores para desovar seus carros, o que acabará por corroer as margens de lucro dos distribuidores. Não por acaso, alguns revendedores já estudam trocar a bandeira GM pelas rivais japonesas Honda, Toyota e Mitsubishi, a exemplo do que vem acontecendo nos Estados Unidos.

Apesar da imensa carga psicológica (e, por vezes, financeira), processos envolvendo a concordata da matriz nem sempre significam uma sentença de morte para as subsidiárias. Em muitos casos, as filiais aproveitam-se do afrouxamento dos vínculos com a empresa-mãe para se livrar de ervas daninhas, como o excesso de burocracia e a morosidade na tomada de decisões, tornando-se mais eficientes. O que aconteceu com a fabricante de autopeças Delphi, curiosamente uma subsidiária da GM, é emblemático desse tipo de situação. Para sobreviver ao penoso processo de reestruturação da matriz, que entrou em concordata no final de 2005, a subsidiária brasileira decidiu se reinventar. Depois de reduzir sua pesada estrutura de custos, a Delphi, até então especializada no fornecimento de peças de menor valor agregado à própria GM, investiu em produtos de alta tecnologia, como aparelhos de GPS e sistemas elétricos integrados. Com isso, conseguiu diversificar seu portfólio de clientes, tornando-se menos dependente da problemática GM para crescer. Só neste ano, a filial brasileira deverá registrar um crescimento superior a 10%, com uma receita na casa dos 2 bilhões de reais. Sinal de que, mesmo com todas as dificuldades, a orfandade pode até deixar a GM brasileira mais forte.